sábado, setembro 23, 2006

"Eis o que chamo de interfragilidade. Para chegar a ela, é preciso percorrer três planos: a) primeiro, a fase de prevalência do ego, com sua mão fechada, pronta para o soco, ou então crispada sobre e empunhadura da espada; b) a seguir surge a etapa da mão aberta e estendida, que resulta do trabalho sobre a dimensão egóica; c) por fim vem a mão estendida, que se continua por um braço, que por sua vez se alia a outro e ambos se dispõem a abraçar.

Os braços pertencem a um corpo. No estado atual de nossa cultura, este é comandado pelas determinações do ego não trabalhado, que precisa dele para utilizá-lo como arma ou ferramenta, dado que é assim que exerce a competição e a agressividade. O ego “possui” o corpo, e essa relação dividida transforma a vida das pessoas em uma sucessão de apegos, disputas e conflitos.


Já a experiência do ego trabalhado muda esse horizonte, porque torna-se claro que não possuímos o nosso corpo: nós o somos. Entendida dessa forma, a corporeidade passa a ser vivida como uma intercorporeidade — e assim nos damos conta de que o corpo é o lugar onde se fundem o morador e a morada, a teoria e a prática, o abstrato e o concreto, o ser e o nada.
Da intercorporeidade emerge a espiritualidade. Esta, como escrevi antes, corresponde a uma atitude de respeito pelo mundo natural e participação em seus processos. Tudo isso começa, é claro, pela relação com o outro. Não estou dizendo que não se deva buscar por outros meios a transcendência, mesmo porque esta é uma dimensão necessária e fundamental para o ser humano. O ponto no qual insisto é que nenhuma iniciativa de religação pode ser tomada sem que primeiro se chegue ao ponto mais importante de todo o processo, que é a legitimação da figura do outro.

Se a busca do outro é a procura da integração no mundo, dizer que o amor é uma dimensão biológica só na aparência é uma redução. Uma reflexão mais aprofundada revela que apenas por meio do outro é possível ampliar e transcender as limitações de nossa fragmentação e solidão existencial.

A busca da alteridade é inerente à condição humana. Já sabemos que a localização anatômica de nossos olhos revela que eles estão orientados para enxergar o outro. Também não podemos abraçar a nós mesmos: só o outro pode abraçar-nos. Eis por que precisamos dele: para que nos abrace e assim nos ajude a saber que existimos".


Humberto Mariotti
Os cinco saberes do pensamento complexo
In: http://www.geocities.com/pluriversu/piaget.html

Nenhum comentário: