Arnaldo Jabor - O homem versus o mosquito |
O Globo |
25/3/2008 |
O Rio é uma calamidade urgente que tem de ser assumida Não interessa saber se a dengue é uma epidemia ou não. A dengue é apenas a forma microbiológica que expõe o caos geral da administração do Rio. Os vírus proliferam pelo mesmo fertilizante que estimula a corrupção, a violência, a vergonha burocrática. A verdadeira epidemia é a administração da cidade que já atinge um grau de gravidade talvez irreversível. Vivemos no Rio (oh leitores de outros estados!...) a sensação permanente do Insolúvel. Já temos a dengue, a febre amarela; um dia chegaremos à perfeição da varíola. Mas muitos sintomas eclodem alem da dengue: depressão, miséria, violência, ignorância. A própria crise psicótica do Cesar Maia também é um sintoma. Ele, que pareceu um exemplo de pragmatismo para quebrar a cadeia do populismo, entrou em catatonia, em paralisia mental, e não fala mais. Diante do Insolúvel, ele emite ruídos de e-mail como um robô quebrado. O Rio de hoje é o filho defeituoso que a ditadura militar criou, pela fusão com o Estado fluminense, a estratégia "geiseliana" de afastar o MDB de uma possível vitória na política nacional em 75. A des-fusão dos dois estados e a volta da Guanabara é um tema que surgiu, fervilhou e esfriou de novo, como tudo aqui. Seria uma utopia? Na Prefeitura, na Câmara Municipal, assembléias, repartições, vemos a cenografia e figurinos de nossa desgraça. Estamos salpicados de favelas, de onde descem hordas de assaltantes para pescar cidadãos como num parque temático, somos governados por populistas de direita há décadas. Nosso melhor governador ("prefeito" do Estado da Guanabara) foi o Carlos Lacerda. Homem inteligente e competente - o ódio máximo de minha juventude - ( podem me esculhambar, velhos comunas...), mas que nos trouxe luz, água, túneis, urbanização e o conceito de administração moderna contra a politicagem fisiológica. Lacerda, com todos seus defeitos, era um atalho no populismo que tirou o Rio do ciclo "de dia falta água, de noite falta luz..." Hoje, há um caldo de cultura de onde germina nossa tragédia. Ou melhor, duas grandes poças de cultura que se somam. A primeira grande poça trágica é a imensa ignorância da população pobre, presa da demagogia de oportunistas que usam a religião, o clientelismo, o cabresto, grana, tudo para conquistar votos. A crassa ignorância dos despossuídos é o chão onde crescem os pseudo-políticos, como a água parada gesta ovos de mosquitos. A segunda poça de germes é mais sutil. Não está no analfabetismo, nem na crendice, nem na ingenuidade. Está no carioca médio e em sua "cultura malandra". Depois de décadas de desgraça, ainda não sabemos como agir, como nos mobilizar, além de vagos protestos, cartas a leitores ou comentários (como eu mesmo faço), na facilidade da indignação impotente. Cariocas, somos considerados criativos e manemolentes, quando hoje estamos mal informados e sem inspiração. Somos malandros com o terno esfarrapado, a navalha sem aço e o chapéu panamá rasgado. O carioca tem uma "poética" irresponsabilidade política. Carioca gosta de falar de política mas não de agir politicamente; tudo se afoga no chope ou na praia e chegamos, no máximo, a movimentos abstratos, pedindo paz, abraçando a Lagoa, cantando, chorando. O carioca é ideológico, mas deixa a política para os canalhas. E nossa única saída para a tragédia que vivemos seria uma virada pragmática, uma mudança, uma diferença de métodos e de ética. O Rio está organizado para "não" funcionar. Tornou-se impossível governar sem uma macro-mudança administrativa. Precisamos de cinturões industriais na periferias, precisamos criar algum objetivo econômico para a região, seja a criação de uma "hong kong" carioca, uma base financeira e cultural. A idéia de que há uma "solução" para o Rio é uma falácia. Precisamos de atalhos, de imaginação. Não dá para retornar a uma "normalidade" ideal, apenas por uma corriqueira substituição de poder. O Rio tem de planejar seu futuro em cima de um luto, da aceitação de uma grave encrenca em estado adiantado. Com a aproximação das eleições para a Prefeitura, dois cenários se apresentam na paisagem política: o atraso e a possibilidade de uma modernização. Marcelo Crivella é o uso da política como instrumento de outro poder. A prefeitura não como um instrumento para o bem da cidade. A cidade não como fim, mas como meio. Seus eleitores já foram escolhidos e apontados em sua primeira declaração contra Fernando Gabeira: "Ele é a favor de homem com homem, aborto e maconha". É nítido que ele vai usar a superstição, o moralismo tacanho, a ignorância e a obediência religiosa para se eleger, depois de ter sabiamente desviado Wagner Montes do caminho, ele o mais forte candidato no mundo da ignorância pública. Para esta vertente político-religiosa, quanto mais paralisada a máquina da cidade, melhor. Quanto mais indefesos forem os aparelhos do estado, melhor. Depois do populismo chaguista no estado, depois da honestidade incompetente de Saturnino Braga, depois do brizolismo, da piração de Cesar Maia, involuímos para o populismo da fé. Por outro lado, a possibilidade de eleição de Fernando Gabeira pode ser uma oportuna retomada de um pragmatismo que não se vê desde o boom do Estado da Guanabara. Não falo por salvacionismo, nem Gabeira seria um bonaparte. Falo porque ele pode criar uma nova vertente política, cortando caminhos pela imaginação, pela criatividade e pelo nível intelectual e contemporâneo que ele representa. Mudança de rumos, mudança: quase um Obama carioca. Quem pode atrapalhar Gabeira? Homens e mulheres de bem, como Chico Alencar, Jandira, Eduardo Paes, que pensam ainda em termos legítimos (sem dúvida) mas também sem possibilidade alguma de vitória. Eles teriam de entender e se coligar com o único que tem uma chance de vencer o populismo psicótico (sou um romântico). Entender que o Rio não é uma cidade a mais à espera de uma eleição. Somos uma calamidade urgente que tem de ser assumida, como o desmatamento da Amazônia ou a seca no Nordeste. |
quinta-feira, março 27, 2008
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